Construção de conhecimentos e Complexidade

Tu me afetas, me constituo professora 

Valéria Rosa Poubell 
Professora e Pedagoga, 
Especialista em Educação de Jovens e Adultos 

Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY

Este texto foi motivado nas discussões da disciplina eletiva do Mestrado em Educação Básica do Colégio Pedro II, no ano de 2017, quando frequentava o curso de Residência Docente naquela instituição. O objetivo central constituiu-se na narrativa de uma experiência pessoal afetiva. 

Como já dizia Vinicius, o poeta, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida. 

Fala extremamente baixa, olhar que nunca encontrava o outro, ouvidos absortos, riso nunca emitido. Os afetos pareciam desabitar a criança que um dia fui, para qual as brincadeiras não passavam de atividades enfadonhas e alienantes. Escrever e descobrir o que significavam aquelas letrinhas que havia naqueles livrinhos encontrados pelo pai durante uma das inúmeras viagens a trabalho, envolviam-me o espírito desde a tenra idade. Àquela época, no auge dos dois três anos já vividos, o ato de escrever se traduzia na arte de desenvolver montes de garatujas e desenhos de elementos da natureza, como flores, árvores, pedras. Ah, as pedras! Como me encantavam! Mas essa é outra parte desta história que traço aqui em linhas mínimas. 

Aos quatro anos ouvir, ver e sentir tomaram uma dimensão imensurável em meu pequenino e acanhadíssimo ser. E, então, comecei a juntar os fatos ouvidos, as imagens observadas, a imaginação irrequieta e as tímidas respostas às inúmeras perguntas: “O que está escrito aqui? E aqui?”. As letras, antes não compreendidas, de repente começaram a povoar de sentido os meus pensamentos. Passava horas junto àqueles livrinhos-presente-do-acaso. Lia e relia as suas imagens e tentava decifrar as suas mensagens. 

Naquele tempo (e ainda hoje) em minha família, não era comum ter alguém lendo para as crianças. Os adultos eram leitores, com pouca escolarização, mas se viravam na leitura e na escrita. Os livros adentravam muito casualmente nossos lares. Mas a oralitura, representada pela figura da avó paterna, pessoa por quem fui criada e educada, tinha presença constante. Esta sim, era para nós atividade frequente, esperada e muito prazerosa. E talvez por conta dela, pela magia do seu encanto, fui tão afetada pelo mundo das histórias. 

Ter ouvido todas aquelas histórias, contadas de maneira contagiante, me permite lembrar delas ainda hoje e com riqueza dos detalhes. Dentre tantas, tinha a tal “A formiguinha e a neve”, o que muito mais tarde descobri como fábula e sempre a reconto para os meus alunos. Não me pergunte de onde ela tirava essas histórias, provavelmente alguém contou para ela ou ela leu em algum livro que casualmente tenha passado por suas mãos. Tinha as histórias da sua nada fácil vida. Mãe aos treze anos de idade, cuidava de mim e de meus irmãos com muita rigidez, mas permeada de muita amorosidade, se é que ambos possam caminhar juntas, na qual o afeto ultrapassava e muito a passada de mão em minha cabeça ou dos meus irmãos. Aliás, isto passava longe mesmo! Era o afeto do ensinar a enxergar além dos objetos, das diferentes imagens que surgiam a todo momento a nossa frente. E num tempo em que as mídias digitais inexistiam em nosso cotidiano. 

A família conta que aprendi a ler praticamente sozinha, fato atestado por uma professora (chamada explicadora na época), quando fui confiada a ela para o ensino das primeiras letras. Ler e escrever passaram a fazer parte da minha vida como água. Era odiada pela irmã por nunca querer brincar e preferir os papéis e os poucos lápis que tinha. O chão embaixo da mesa era o meu local preferido. Fui também fortemente afetada por ele e pelas tantas árvores que nos cercavam. Adorava subir nelas e de lá e debaixo da mesa brotavam muitas cartinhas para vovó e toda a família. Escrevia também para Deus, a figura que tanto ouvia falar e pedia para proteger a minha avó das tantas doenças que tinha. Aos oito anos, pedi a ele para me ajudar no meu casamento, pois queria muito me casar, ali, com oito anos mesmo. 

Foi aos oito anos também que, através da fama de leitora e escritora assídua, uma senhora que frequentava a casa da minha avó, me pediu para ensinar-lhe a escrever o seu nome. Naquele tempo, assinar o nome era condição de estar alfabetizado e o sonho dela era alfabetizar-se. Minha avó se encheu de orgulho, me incentivou e tratou de arrumar aquela minha mesa inspiradora no quintal para que eu pudesse ensinar D. Zinha, como era chamada. Só que D. Zinha, com seus sessenta e poucos anos, tinha uma irmã mais velha e alguns filhos, uma dela, a mais nova também não assinava o nome. Então a coisa ficou assim: eu só teria que alfabetizar D. Zinha e sua filha Deizinha, D. Tiana e Sebastiana, uma mulher acolhida na casa da minha avó porque não tinha onde morar. E não é que consegui. Lembro até hoje, das listas enormes que pedia que fizessem para copiar os seus nomes. E brigava se elas não traziam as lições que eram pedidas prontinhas. Eram cópias e mais cópias das letras do alfabeto e dos seus nomes. Foi assim, por osmose. 

E foi ali, naquele momento, aos oito anos de idade que, afetada, disse a minha avó “Quero ser professora!”. Fui em busca. Encontrei em mim uma professora e me encantei com o encontro.

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